Sereias do asfalto, bonecas e outras bichas: apontamentos sobre cenas transviadas e violências de gênero no Brasil
Tarmac mermaids, queens and other sissies: notes on queer scenes and gender violence in Brazil
Autores
Araujo Mota, Edinaldo
https://orcid.org/0000-0002-4022-6106
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Datos del artículo
Año | Year: 2022
Volumen | Volume: 10
Número | Issue: 1
DOI: http://dx.doi.org/10.17502/mrcs.v10i1.539
Recibido | Received: 1-2-2022
Aceptado | Accepted: 17-3-2022
Primera página | First page: 102
Última página | Last page: 117
Resumen
Para compreender a natureza da violência contra o feminino e seus esquemas de reprodução, tem sido crucial observar como sua inferiorização na ordem do gênero recai numa rede de violências contra mulheres, cis e transgênero, travestis, gays afeminados e pessoas não-binaries. Neste artigo, reflete-se sobre a abjeção ao feminino e suas resistências no contexto brasileiro a partir da proliferação de artistas atuais da música pop que perturbam e reelaboram os padrões e normas de gênero. Essas expressões nomeadas na pesquisa de cenas musicais transviadas, ao tensionarem valores patriarcais, misóginos e racistas, constituem engajamentos identitários e têm funcionado como um dos principais mecanismos de luta política LGBTQI. A partir da noção de cena cultural/musical, da crítica feminista dos 1980 e 1990 e dos estudos queer, propõe-se pensar como cenas transviadas negociam traumas históricos e violências sistêmicas, e reelaboram elementos da cultura dominante como contradiscursos. Entre espacialidades e imaginações, essas cenas se colocam contra a noção de esfera pública dominante. Propõe-se pensá-las como espaços contrapúblicos nos quais sujeitos interpretam suas próprias identidades, interesses e necessidades e ressignificam valores sociais e comunitarios.
Palabras clave: cenas musicais, violência de gênero, corpos disidentes, transviado, música brasileira,
Abstract
In order to understand the nature of violence against the feminine and its reproduction schemes, it is crucial to observe how its inferiorization in the order of gender triggers a network of violence against cis and transgender women, transvestites, effeminate gays and non-binary people. This article reflects upon the abjection of the feminine and its resistance in the Brazilian social-context, based on the proliferation of current pop music artists who derange and reshape gender patterns and norms. These expressions named in the research of deviant musical scenes, by stressing patriarchal, misogynistic and racist values, constitute identitarian engagements and have worked as one of the main mechanisms of the LGBTQI political fight. Based on the notion of the cultural/musical scene, on the feminist criticism of the 1980-1990s and on queer studies, it is proposed to think about how queer scenes negotiate historical traumas and systemic violence, and re-elaborate elements of the dominant culture as counter-discourses. Between spatialities and imaginations, these scenes stand against the notion of the dominant public sphere. It is proposed to think of them as counter-public spaces in which subjects interpret their own identities, interests and needs and re-signify social and community values.
Key words: music scenes, gender violence, dissident bodies, deviant, brazilian music,
Cómo citar este artículo
Araujo Mota, E. (2022): “Sereias do asfalto, bonecas e outras bichas: apontamentos sobre cenas transviadas e violências de gênero no Brasil”, methaodos.revista de ciencias sociales, 10 (1): 102-117. http://dx.doi.org/10.17502/mrcs.v10i1.539
Contenido del artículo
1. Introdução: violência, gênero e o transviado: questões iniciais
No México de 1993, jornalistas e ativistas pelos direitos das mulheres começaram a quantificar os assassinatos contra mulheres concentrados na Ciudad Juárez, com intuito de expor o crescimento vertiginoso de mortes na região e denunciar a situação alarmante na qual viviam muitas delas. Desde então, o feminicídio passa a ser assumindo como um genocídio, extermínio deliberado a partir de dadas condições históricas, resultado de práticas sociais que violam a integridade física, psicológica e a liberdade de meninas e mulheres (Gargallo, 2012)Ref17. Apesar dos muitos avanços no combate às opressões que sofrem as mulheres, em países latino-americanos, como México, Honduras, República Dominicana, Colômbia, Bolívia e Brasil, a situação do feminicídio permanece grave e atual, e se agrava quando indicadores de etnia, raça e classe são incorporados aos dados de violência de gênero.
A disputa que surge com a tipificação do crime ainda tem enfrentando obstáculos, como a falta de políticas públicas de apoio às mulheres violentadas e de combate às violências de gênero. Berenice Bento (2016)Ref2 acredita que para entendermos a natureza da violência contra a mulher e seus esquemas sistêmicos de reprodução é importante não circunscrever a análise apenas ao que chama de "feminino-mulher". Este é um esforço da autora ao reivindicar que a violência de gênero opera também contra travestis, mulheres trans e mulheres transexuais. Pela posição que o feminino ocupa na ordem do gênero, o transfeminicídio, tal como o feminicídio, se caracteriza como uma política “intencional e sistemática de eliminação” de mulheridades, e no caso das travestis, mulheres trans e mulheres transexuais, “motivada pela negação de humanidade às vítimas” (Bento, 2016, p. 51)Ref2.
Em termos de identidades de gênero e expressões de sexualidades, é preciso considerar os "mecanismos sub-reptícios", conforme Bento (2016)Ref2, que deslegitimam o feminino e que devem ser vistos como uma "genealogia daquilo que chamo de feminino abjeto” (Bento, 2016, p. 54)Ref2. Essa inferiorização ao feminino recai numa ojeriza que atinge também os gays afeminados e meninos femininos. Na compreensão dos fenômenos sociais, uma rede de violências é tecida e cravada nas estruturas sociais, naturalizando formas daquilo que deve ser reconhecido socialmente como feminino de um certo tipo.
Diante dessas questões iniciais, este artigo busca refletir sobre essa abjeção ao feminino e suas resistências no contexto do território que me afeta, o Brasil. Nele, os dados expõem a triste realidade para mulheres: 30% dos casos de violência doméstica ocorrem diariamente no país, e mais de quatro mil mulheres foram vítimas letais no período de um ano, segundo o Atlas da Violência 2021 (Cerqueira, 2021)Ref10. No mesmo relatório, quando esses dados levam em conta a raça indicam a perpetuação da desigualdade e violência racial: o risco de uma mulher negra ser vítima de feminicídio é quase duas vezes maior do que o de uma mulher não negra.
No que tange à população LGBTQIAP+1, as estatísticas seguem devastadoras, principalmente pela falta de métricas e da própria tipificação dos crimes. Atualmente, o Brasil não dispõe de mecanismos oficiais de sistematização e publicização de dados e indicadores de violência contra minorias sexuais e de gênero. Muitas dessas informações são produzidas por organizações civis, baseadas em notícias de jornal, internet e outras fontes, o que tem ocasionado uma considerável subnotificação dos casos2. Nos poucos dados disponíveis, de janeiro à agosto de 2021, mais de 200 pessoas foram assassinadas ou se suicidaram, em decorrência de crimes de ódio, como aponta relatório do Observatório de Mortes Violentas de LGBTQI+ no Brasil (Gastaldi et al., 2021)Ref18. Deste total, 32,4% são pessoas pretas e pardas. Nos dados sobre assassinatos de pessoas trans, pessoas negras representam 81% do total de mortes. Em 2021, foram registrados pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans, 135 deles contra travestis e mulheres transexuais e 5 contra homens trans e pessoas transmasculinas (Benevides, 2022)Ref1.
Deparamo-nos com um regime de violência sistêmica bastante custoso de ser transformado, mas que tem sido insistentemente combatido por movimentos sociais e ativistas no contexto brasileiro atual. Dentro desse cenário, chama atenção a proliferação de jovens independentes que se destacam na música pop brasileira, expondo na cena os próprios limites das identidades e da alteridade de gênero, numa plural e intensa produção musical (Rocha, 2021)Ref33.
Assumindo os insultos ao desvio das normas, jovens da música têm se assumido bichas, viadas, bonecas e bonequinhas, travecas, sereias do asfalto, mulheres-diabas. Têm circulado pelos espaços midiáticos hegemônicos, bagunçando fronteiras e remixando corporalidades.
Essas artistas transitam pelos universos mainstream e alternativo, embaralhando-os. Podemos pensar que essas performances estéticas funcionam como contraprodução dos sujeitos LGBTQI dentro de uma dada hegemonia, e que tem se expandido principalmente com uso das redes sociais digitais. O crescimento de estudos de gênero e sexualidade e o debate sobre a questão do queer no Brasil formam parte das condições de existência de tal fenômeno (Colling, 2018)Ref11. Do ponto de vista da comunicação, a imprensa tem insistido em caracterizá-lo como cena LGBTQI ou Queer, ou como MPBixa, MPBTrans, uma alusão à música popular brasileira para posicionar a esta cena pela diferença em relação às tradições consagradas.
Apesar desta explosão produtiva e midiática, continuamente nos deparamos com situações de violência, formas de rechaço e ojeriza que se reproduzem em discursos de ódio e ataques aos perfis dos/as artistas em redes sociais digitais. Diante de múltiplas resistências aos padrões morais da sociedade brasileira, nos interessa refletir acerca do fenômeno insistindo em sua capacidade contraprodutiva, que implode os sistemas sexo-genéricos, valores patriarcais, misóginos e racistas, como possibilidade de existir fora das normas estruturais econômicas, políticas, e culturais do capitalismo.
Tenho apostado que engajamentos identitários formados na e pela música pop brasileira têm funcionado como um dos principais mecanismos atuais da luta política LGBTQI no país. Muito se deve ao seu espalhamento midiático, mas é um interessante fenômeno para problematizar como esses grupamentos juvenis se espacializam tomando identidades de gênero como potência de transformação. Isso não significa que esses grupos tem se formado alheios às dinâmicas do capitalismo tardio. Ao contrário, é de dentro dessas estruturas sociais que esses grupos encontram modos de bagunçar normas e padrões como potência de transformação. Acreditamos que dinâmicas e valores dominantes são ressignificados tendo o consumo cultural como importante lugar de mediação de identidades e cidadanias. Diante dessa cena, nos questionamos como artistas, coletivos e juventudes engajadas habitam territorialidades forjadas no combate à violência e à precarização das vidas dissidentes sexo-genéricas.
Essas espacialidades, conformadas nas margens e bordas, circulam em intensos fluxos de imagem e informação nos espaços hegemônicos e negociam traumas históricos e violências sistêmicas. Seus integrantes, grupos sociais subalternizados, inventam e reinventam elementos da cultura dominante como contradiscursos. Acredito que cenas transviadas nos dizem sobre espacialidades que se colocam contra a noção de esfera pública dominante, e por isso, segundo José Esteban Muñoz (1999)Ref29, são espaços contrapúblicos nos quais sujeitos interpretam suas próprias identidades, interesses e necessidades e ressignificam valores sociais e comunitários.
Com este debate, proponho olhar para cenas transviadas, se tomadas como espaços contrapúblicos, como lugares de coalisões éticas e estéticas que funcionam tanto como autodefinição quanto como divergência (Taylor, 2012)Ref37. Para isso, nosso percurso se inicia com a descrição do fenômeno musical, destacando as tensões aos binarismos de gênero que aparecem em suas performances. Em seguida, pela inscrição da cena transviada no terreno da cultura pop, em seu caráter ambivalente e ambíguo, revisito os marcos teóricos dos estudos feministas e dos estudos queer numa tentativa tanto de extrair as principais contribuições para compreender o fenômeno em questão, como também para destacar as tensões das próprias teorias quando tratamos do contexto latino-americano e brasileiro.
Num esforço de amplificar o debate e projetar discussões mais amplas a partir deste texto, busco adensar o ponto de vista dos estudos sociológicos e do urbano a partir dos conceitos de cenas sociais/culturais/musicais. Com isso, pretendo considerar as nuances do consumo musical nos espaços urbanos e a formação de comunidades que incorporam os desvios das normas de gênero em suas dimensões ética e estética. Este gesto implica um olhar para os fenômenos musicais tomando o corpo como lugar onde opera a repetição dos significados culturais, em seus contextos de violências sistêmicas, para fazer pulsar também disrupções e resistências às estruturas em processos de reescritura daquilo que é concebido como normal, natural, orgânico em vidas inteligíveis.
2. Pra ser transviada precisa ter talento: cenas musicais e desidentificações
Olha só doutor, saca só que genial
Sabe a minha identidade? Nada a ver com genital
Estou procurando, estou tentando entender
O que é que tem em mim que tanto incomoda você?
[...] Eu vou te confessar que às vezes nem eu me aguento
Pra ser tão transviada assim precisa ter muito, mas muito talento
Ser bicha, trava, sapatão, trans, bissexual é também poder resistir
(Linn da Quebrada e As Baías e a Cozinha Mineira – Absolutas)
Em 2017, a marca de vodka sueca Absolut lançou o projeto Absolut Art Resistance, retomando uma série de ações históricas da empresa que davam visibilidade a algumas causas minoritárias. A retomada do projeto ocorreu no Brasil e a campanha trazia como mote a frase “A Arte Resiste. O mundo progride”, centrando-se nas causas das pessoas LGBTQIAP+. Como parte das ações, produziram o audiovisual “Absolutas”, uma parceria entre Linn da Quebrada, cantora e compositora travesti3, e o grupo As Baías e a Cozinha Mineira, das cantoras trans Raquel Virgínia e Assucena Assucena.
A composição audiovisual traz um elenco formado por muitas pessoas, distintas entre si em suas formas, rostos, vestimentas, gestos corporais. Durante o clipe, as figuras do elenco circulam por diversos espaços. Nos supermercados e bares, estão sujeitas a olhares intimidadores. Nos espaços das festas, dançam e criam uma atmosfera de prazer e comunhão. A montagem cruza os lugares públicos, da opressão e da diversão, com cenas mais domésticas, de intimidade e auto-conhecimento do corpo, com uso de objetos cênicos como espelhos e janelas. Esses muitos corpos, que ora aparecem em frames individuais intercalados entre si, em dado momento se encontram no espaço da rua. Um take capturado por um drone nos remete a ideia de ocupação das ruas por essas corpas e corpos.
Na sequência, uma série de planos médios enquadram as artistas, enquanto elas enunciam o verso “Ser bicha, trava, sapatão, trans, bissexual é também poder resistir”. Seus olhares se dirigem para a câmera e, ao enunciarem esses termos, utilizados na linguagem popular brasileira como ofensa, materializam no vídeo o gesto da auto-aceitação a partir dos insultos. Ressignificam o ofensivo como potência de vida. A imagem das três cantoras, juntas, se funde à imagem4 da fachada de um edifício, onde se vê uma intervenção artística que reproduz cenas do videoclipe com os dizeres: “A Arte Resiste”.

O videoclipe encerra com algumas falas das cantoras, enquanto a ficha técnica do vídeo aparece em paralelo na imagem. Linn da Quebrada reflete sobre seu corpo e suas ações no mundo: “Eu entendo a minha vida, e o meu corpo principalmente, como esse espaço de experimentação radical”.
Descrevo mais detidamente esse audiovisual porque me parece significativo o modo como ele tenta mostrar a “invasão rebelde” de uma série de artistas trans, travestis, drag queens, gays afeminadas, pessoas não-bináries que tem surgido na música brasileira, a partir de performances altamente circuláveis nos espaços da cultura midiática, e que tem tensionado os padrões e normas de gênero. Na fala de Linn da Quebrada, retenho a dimensão espacial atribuída à sua vida e ao corpo, como um corpo-território, como lugar de operação de trânsitos e mudanças sociais.
Assim como Linn, muitas outras têm assumido seus corpos como território da falha, do desvio, da contaminação e da impureza constitutiva (Rocha, 2021)Ref33. Assumem a carga de violência histórica imputada às travestis como auto-definição e luta política. Segundo Pelúcio (2005)Ref31, há uma série de tensões morais, éticas e estéticas que constituem a identidade travesti nas sociedades latino-americanas em sua matriz cisheteronormativa. As marcas do estigma da travesti brasileira estão localizadas na construção de um corpo ambíguo e indeterminado, num corpo que apresenta, na visão cisheteronormativa, um excesso de gênero (feminino), e que tem a figura do pênis como lugar contraditório de desejo e abjeção (Veras e Andreu, 2015)Ref40.
Isso se expressa de modo paradoxal no Brasil: o país ocupa o topo do ranking dos países com maior número de assassinatos contra pessoas trans, ao mesmo tempo que é o país que mais consome pornografia com pessoas trans, onde termos como “brazilian shemale” aparecem na liderança dessas plataformas (Benevides, 2021)Ref1. O que tem ocorrido com essas artistas, ao se autodefinirem travestis, é exatamente desafiar os limites identitários que relegam suas existências às margens, às zonas obscuras e locais pontuais.
Além de Linn da Quebrada, Raquel Virgínia, Assucena Assucena, outras artistas também têm problematizado as vivências travestis na música, questionando violências compulsórias e estigmatizações. Sujeitas travestis restituem todos os dias a possibilidade de serem vidas consideradas humanas, possíveis de serem vividas, disputando outros modos de viver as transgeneridades fora da prostituição. Nos centros urbanos brasileiros, as travestis tem sobrevivido, muitas vezes, como profissionais do sexo, e os espaços possíveis para suas existências tem sido, por longos anos, os pontos de prostituição, um espaço paradoxal que une instâncias do trabalho e das relações sociais entre elas.
Cantoras travestis e mulheres trans têm nos ensinado como as violências e opressões das estruturas sociais se pulverizam e recaem nas bichas e gays afeminadas, drag queens e não binaries. Este aprendizado nos ajuda a compreender, dentro desse espectro, a presença de performances drag queens que também invadem os espaços midiáticos no Brasil da atualidade. O sucesso estrondoso da cantora drag Pabllo Vittar, que se reconhece como gênero fluido, começou quando criou uma versão abrasileirada5 da música "Lean On", de Major Lazer. Desde então, o perfil da cantora no YouTube já contabiliza quase 2 bilhões de acessos, e seus videoclipes atingem recordes de visualizações em menos de 24 horas depois de lançados. Recentemente, tornou-se a drag mais seguida no mundo em todas as redes sociais, quando ultrapassou no TikTok a drag vietnamita Plastique Tiara, participante do RuPaul Drag’s Race (von Borell, 2021)Ref41. Em seu álbum mais recente, Batidão Tropical6, revisita repertórios de bandas de calypso, tecnobrega e forró, gêneros musicais de regiões periféricas do norte e nordeste do Brasil. A partir desses elementos incorporados à sua produção, Pabllo tem bagunçado os próprios gêneros musicais e as corporalidades a eles associadas, ao tematizar figuras e imaginários sociais que rondam tais sonoridades.
Já Gloria Groove, rapper e drag queen, numa entrevista, diz se identificar com o “rap e o hip hop, gêneros sempre associados aos machos” e investe numa relação com a “arte drag” como mote do seu discurso. “Que negócio é esse daí? É mulher? Que bicho que é? Prazer, eu sou arte, meu querido. Então, pode me aplaudir de pé”, recita a cantora nos versos de Dona7. Gloria Groove surge porque Daniel, gay afeminado que vive na Zona Leste de São Paulo, não conseguia espaço na cena do rap e hip hop paulistano. Seu mais novo disco, lançado em fevereiro de 2022, se chama Lady Leste, no qual criou uma espécie de persona “gangsta queen” à brasileira para recontar sua história pessoal na região da cidade homenageando mulheres periféricas (Françoza, 2022)Ref16. Como ela mesmo afirma, se existe a Lady Gaga, por que não pode existir também a Lady Leste?
Por outros caminhos, o cantor Johnny Hooker8 tem dialogado com gêneros musicais tais como o pop, o brega e o samba, afastando-se de um referente masculino heteronormativo (Mendonça e Kolinski Machado, 2019)Ref27. Afirma confundir os termos da heteronorma a partir da figura da “bicha”, do “viado”, termos utilizados como insulto para gays afeminados. “Eu acho que eu me defino como bicha mesmo. Para os héteros, Senhora Excelentíssima Bicha” (Popline, 2018). De modo similar, o cantor Hiran tem se apropriado do hip hop para dizer que “Tem mana no Rap”9. A palavra mana é um diminutivo que se refere a irmã/hermana, expressão utilizada por pessoas LGBTQI para tratar umas às outras, e que é convocada por Hiran para afirmar que seguirá resistindo dentro da hegemonia masculina do rap como “bicha preta do interior da Bahia” (Fernandes, 2021)Ref14.

Na expressão da maioria dessas artistas, é clara a articulação de suas performances com sonoridades vinculadas a territórios periféricos brasileiros. As violências e estigmatização associadas aos corpos e expressões de gênero acabam incidindo tanto numa relação com os territórios como também em desvalorizações dos gêneros musicais vinculados a esses espaços. A série de artistas da qual tratamos tem misturado elementos locais com fluxos mais globais, presentes no trap, no pop eletrônico, no reggaeton, dentre outros gêneros do pop contemporâneo. Mesclando fluxos globais e reescrevendo localismos, constituem outros roteiros para situações cotidianas narradas em suas canções. Janotti (2021)Ref23 considera imprescindível “ascultar com cuidado” como corpos não-bináries têm se posicionado nos gêneros musicais, propondo, ao mesmo tempo, formas múltiplas de habitá-los e de reconstruí-los.
Enquanto táticas de guerrilhas estético-políticas, como nos indica Janotti (2021)Ref23 e Rocha (2021)Ref33, sujeitos não-bináries na música brasileira atual destituem certas tradições já consolidadas (dos corpos e da música) e rompem expectativas hegemônicas (das identidades e sonoridades), que dão a ver elementos, à primeira vista, não disponíveis no contexto cultural (Filho et al., 2018)Ref15, e que também dão ver a uma série de outros fenômenos que se constituíram nas margens e bordas de certos contextos, numa espécie de continuidade histórica. Essas nuances disruptivas são indicativas tanto das potências/pressões quanto dos limites com os quais as expressões culturais se manifestam.
Nesse sentido, dentro da hegemonia da sociedade capitalista, há um complexo de experiências e relações, com pressões e limites específicos e mutáveis. Essas expressões dissidentes surgem de dentro de estruturas internas constituídas como forma de dominação, e tem sido continuamente recriadas e modificadas. O capitalismo hegemônico é desafiado por “pressões que não são as suas próprias pressões”. (Williams, 1979, p. 115)Ref42. A não-binaridade na música pop tem evidenciado, desta forma, confrontos estéticos e outras formas de constituição de sujeitos que dialogam intimamente com as estruturas e dinâmicas das indústrias midiáticas, fazendo brotar de dentro da cultura mainstream brechas e reescrituras, embaralhando os próprios termos da dominação – ainda que mudanças radicais ao capitalismo sejam pouco vistas, revelando os limites estabelecidos pela hegemonia.
Na cultura pop, podemos observar a formação de espaços de investimentos afetivos e estratégias mercadológicas simultaneamente. Isso significa conceber a comunicação como lugar onde se habita e se narra o popular, o “pop-pular” e o “pop-lítico”, como nos sugere Rincón (2015)Ref32, ao abordar a conversão do poder político num espetáculo dos e para os sujeitos da cultura popular. Agrupamentos e comunidades identitários são tomados pelo autor como “quilombos pop-líticos”, em referência ao espaço de rebelião formado por pessoas escravizadas em fuga durante o período de colonização do Brasil.
Quilombos pop-líticos constituem-se num jogo de resistências às submissões, as cumplicidades e o comunitário, as inovações e também as aberrações. Para o autor, grupos juvenis bebem e gozam da sua própria corporalidade, incorporando músicas, telenovelas, experiências festivas e prazeres. Corporificam, portanto, o pop político em práticas cotidianas que mobilizam e engajam outros sujeitos a habitarem o contemporâneo de modo insurgente.
A partir dos quilombos pop-líticos, Rincón nos faz ver como essas jovens artistas instauram o caos às normas de gênero e se libertam do valor de autenticidade e do pedantismo das artes. É de dentro do próprio capitalismo que emergem esses quilombos pop-líticos. Como afirma Rincón, “tudo junto como nos pratos de comida típica latino-americana. Tudo junto, mexido e saboroso: simultaneidade de catarses, obediências, resistências e re-invenções” (Rincón, 2015, p. 196)Ref32.
Pela quantidade de artistas elencadas, podemos afirmar que há um florescimento de performances contestatórias e dissidentes em termos sexo-genéricos, e em alguma medida, o tom de novidade que muitas vezes é aplicado ao fenômeno parece indicar que se vive uma certa liberdade e diversidade. É como se a existência da cena em si, na visão da heteronormatividade, garantisse sua plena segurança, principalmente quando esse discurso incorpora as mudanças nas dinâmicas de consumo provocadas pelas redes sociais digitais. Entretanto, ambiências digitais, que por muito tempo eram “promessas” de espaços de plena liberdade, desvelam alguns ataques e discursos morais conservadores. Podemos citar ação de crackers que derrubaram o canal de Pabllo Vittar no YouTube, excluindo um videoclipe e publicando, em seu lugar, mensagens de apoio a Jair Bolsonaro10 (Canal de Pabllo, 2017), então deputado e atual presidente do Brasil, conhecido por suas declarações homofóbicas e misóginas e pela implantação de um projeto contra os direitos de minorias sociais e políticas em curso no país.
Ainda sobre ataques, Pepita, mulher trans, cantora de funk do Rio de Janeiro, é constantemente criticada nos comentários dos seus videoclipes, tendo seu corpo visto como aberração. Os comentários repudiam seu corpo destacando o fato dele ser construído por procedimentos estéticos e vão além. Suas formas curvilíneas são utilizadas para deslegitimar sua dimensão de “mulher” que assume enquanto mulher transgênero. Durante uma premiação, Pepita reivindicou juntar em seu corpo a existência como “uma travesti, uma sapatão, uma bissexual”, passando preconceito em todos lugares, e como disse, “mesmo assim eu estou com minha cabeça erguida, com meu peito bem durinho e continuo guerreando11.
Apesar do tom de efervescência e rebeldia cultural que paira diante dessas expressões, as violências contra os sujeitos dissidentes têm mostrado uma permanência dominadora, constituidora inclusive de experiências anteriormente silenciadas, numa espécie de continuidade que se dá pela força veemente das estruturas sociais. No entanto, e sobretudo, as opressões são enfrentadas também como uma continuidade histórica à base de muita resistência. Dialogo com Guimarães e Braga (2019)Ref20 para afirmar que essas cenas, passadas e presentes, vulneráveis e rebeldes, operam como um ruído anti-hegemônico, desestruturador das morais que conformam a sociedade brasileira e que são incorporados nos cenários da música popular.
Tenho buscado pensar esse fenômeno chamando-o de cenas musicais transviadas, incorporando aquilo que Berenice Bento (2016Ref2; 2017Ref3) propõe com transviado, um esforço de tradução do queer à brasileira. Assumindo os insultos na linguagem em seus contextos nativos, e incorporando identidades não-essencializadas na relação sexualidades e gêneros, o transviado aglutina múltiplas vivências que tensionam a essencialização e os limites das normalizações. “A bicha, o sapatão, a trava, o traveco, a coisa esquisita, a mulher-macho”, o outro-abjeto localizado no termo transviado sempre esteve presente no Brasil, cumprindo um papel persistente na “produção de vergonha e na garantia de contestação” (Bento, 2017, p. 248)Ref3.
Nesse sentido, acredito que assumir o transviado para compreender expressões artísticas dissidentes é um modo de compreendê-los como contradiscursos que propõem outras políticas para os corpos, gêneros e sexualidades, confundindo não só o masculino e o feminino, mas também as próprias dinâmicas que “binarizam” os fenômenos como alternativo ou mainstream. Isso dialoga com aquilo que o pesquisador cubano José Esteban Muñoz (1999)Ref29 propõe como desidentificação, que agrega recusas e críticas a categorias como sexo, gênero, raça e classe, como uma forma de ação transgressiva e perturbadora, e que surge de dentro da própria cultura hegemônica. A desidentificação é uma incorporação de códigos culturais dominantes, numa eminente reconstituição e mixagem desses códigos.
Muñoz (1999)Ref29 nos diz que a desidentificação, como performances de pessoas queer racializadas (queers of color), tanto expõe as estruturas universalizantes e excludentes quanto ressignifica seu funcionamento, expondo, incluindo e fortalecendo identidades e identificações minoritárias. No Brasil, drags queens, mulheres trans e travestis, pessoas não-binaries, boa parte delas racializadas, tem assumido o “feminino abjeto” como potência para negociar identidades fixas e papéis socialmente codificados a partir de fabricações e fabulações de si, propondo outros roteiros identitários em torno da raça, sexualidade, gênero e distinções identificatórias (Muñoz, 1999)Ref29. Na composição de novos roteiros, essas artistas reconstituem também sonoridades musicais, locais e globais, em que “abundam corpos e sexualidades, exibindo as modernidades da América Latina perfuradas pela oralidade corpórea que nos constituem” (Janotti, 2021)Ref23.
A partir do consumo musical, nos deparamos com narrativas de pertencimentos e tessituras de sentidos, controversas e ambivalentes, que revelam modos de habitar o contemporâneo, assumindo expressões de corpos musicais como forma de engajamento político. Acredito que adensar essas tessituras e redes de sentido precisa compreender como o gênero, como categoria social e histórica, atua de modo performativo, ou seja, como os discursos sobre os gêneros interpelam os sujeitos a seguirem normas e padrões. Por outro lado, é preciso reconhecer também como se constituem as brechas e resistências às forças estruturais do sistema sexo-genérico. Para tal, propomos revisitar a crítica feminista que surge nos Estados Unidos anos 1980 e 1990, que trouxe para os estudos queer brasileiro a problemática do corpo como agência social e a dimensão histórica das identidades de gênero.
3. Corpos e batalhas de gêneros: revisitando a crítica feminista
As teorias feministas que ganham relevo entre os anos 1980 e 1990 foram fundamentais para o debate acerca do gênero, ao tomarem o conceito como uma possibilidade teórica, epistemológica e política de combater as diferenças a partir de características atribuídas a priori. As contribuições da crítica feminista realizada por autoras como Donna Haraway, Teresa de Lauretis, Eve F. Sedgwick, Judith Butler, dentre outras, são importantes para nossa investigação porque compreendem o corpo como espaço de agência, como lugar das possibilidades e multiplicidades de realização dos gêneros na cultura, que vão além dos binarismos pré-estabelecidos pela norma, e que constituem alianças e redes afetivas e políticas.
Tomando o pessoal como político, algumas dessas autoras questionam a ideia de que os corpos têm uma existência significável anterior à marca atribuída do gênero. Por ser uma temporalidade socialmente construída, corpo não seria apenas uma materialidade constituída pelas relações de poder exteriores a ele (De Lauretis, 1987Ref13; Butler, 2017Ref8; 2002Ref7). Os efeitos discursivos do poder são coextensivos à materialidade do corpo, constituindo culturalmente um campo de inteligibilidade que determina quais corpos devem existir e quais aqueles que não são considerados vivíveis. Aqueles sujeitos que desviam da norma têm sua humanidade sob alvo do aniquilamento, abjeção e precarização, formas violentas entranhadas na realidade social.
Os sujeitos desviantes, sob o regime de violência imputado às suas existências, nos mostram os limites de uma experiência discursivamente condicionada por uma matriz cis-heterossexual, que opera como um projeto disciplinador que se baseia em estruturas binárias, como se o binarismo fosse uma “linguagem da racionalidade universal” (Butler, 2017, p. 25). Deste modo, para a crítica feminista, o corpo não é concebido como um meio ou mero instrumento passivo. Do corpo como agência, consideram que é no interior do próprio conjunto de códigos, leis e normas culturais que as subversões são constituídas, exibindo suas falhas e expressas nos corpos. Enquanto desviantes, suas condições de existência borram a simples exterioridade do gênero.
Isso revela tanto a complexidade das relações e das identidades de gênero na sociedade, como a capacidade dos sujeitos de resistirem aos regimes de necropolítica12, um regime de Estado configurador de vidas que importam e do exercício de uma política de morte a determinados corpos. Os limites e fronteiras do discurso hegemônico, ao exibirem seu teor de ficcionalidade, de construção cultural e subjetiva, permitem que os sujeitos dissidentes constituam um conjunto de condições singulares que operam na produção de uma realidade, criando novas necessidades e novos campos de problematização.
Desta forma, a ideia de agência e agenciamento, advindos das proposições filosóficas de Gilles Deleuze e Félix Guattari, são visíveis em alguns trabalhos da crítica feminista desse período. Por outro lado, as contribuições de J. L. Austin, no campo da filosofia da linguagem, foram importantes, em especial para Eve F. Sedgwick e Judith Butler, porque permitiram investigar enunciados e declarações como atos performativos. Ao serem ditos, atos performativos realizam aquilo que está enunciado, em uma constante retroalimentação entre a carne e o discurso. Ou seja, quando enunciam se alguém é um menino ou uma menina, o sistema sexo-genérico age discursivamente vinculando o gênero aos atributos biológicos. Os atos de fala de Austin respondem aos modos como a linguagem constrói e afeta a realidade mais do que meramente a descreve.
A possibilidade de resistir à própria realidade imputada veementemente está no cerne da ideia de performatividade de gênero, proposta por Sedgwick e densamente trabalhada por Butler. Eve F. Sedgwick entende a performatividade como um conjunto de recursos interativos e operativos da ação de afetar o outro, uma força social em suas texturas perceptivas, que indicam o modo como o poder atua como discurso em formas autoritárias e punitivas (Sedgwick, 2003)Ref34. A performatividade de gênero é tomada por Butler (1994)Ref5 para criticar a ideia de que o gênero é um equivalente às instâncias feminino e masculino, porque esse entendimento baseia-se numa fusão de sexo com gênero apenas como “ou um ou outro” (e o outro sendo o feminino). Tanto Sedgwick quanto Butler estão interessadas em investigar como o poder atua em um agir reiterado, numa persistência e ao mesmo tempo instabilidade, a partir de “falhas” e “brechas” dos próprios regimes discursivos.
Para a crítica feminista, ficcionalizar os corpos requer uma ação e prática crítica sobre as operações excludentes da sua própria produção. Apesar de boa parte de seus estudos partirem do campo da linguística, da teoria literária e da filosofia do conhecimento, essa mirada desde a linguagem, e os diálogos com outros marcos teóricos, são importantes lugares de reflexão e debate orientados por perspectivas sociológicas, antropológicas e comunicacionais a partir de certos fenômenos contemporâneos.
Dada a força histórica das opressões contra expressões dissidentes, a rejeição aos significados normativos possui dimensão radical porque dramatiza a própria violência sistêmica a partir de uma posição experimental e transitória. Essas vivências, repletas de exclusão, hostilidade e rebeldia, são uma continuidade social e histórica, um “lembrete persistente” às forças opressoras de sua re-existência. É neste sentido que elas se aproximam da noção de biopolítica, de Michel Foucault, porque as possibilidades de escapar às normas instituídas, em forma de discurso, operam como política nos e pelos corpos.
A crítica ao binarismo do sistema sexo-gênero e a problemática das identidades de gênero como dimensão histórica, que surge com a crítica feminista, tornam-se centrais para a conformação dos estudos queer estadunidense e sua posterior expansão em contextos latinoamericanos. Ao desestabilizarem a própria noção de sujeito do feminismo, questionam as “pretensões de normatividade [...] através das quais as vezes opera a opressão sexual e de gênero” (Butler, 2002, p. 188)Ref7. Os estudos queer vão se debruçar para fabricações e fabulações às normas de legitimidade pelas quais foram degradadas, e como essas ações seguem contrariando repetições (Butler, 2002, p. 192)Ref7. Com as críticas feministas, buscamos reter suas densas contribuições sobre as estruturas de opressão e violência para compreender a cis-heterossexualidade como um modelo dominante de uma tecnologia complexa.
4. Vidas transviadas importam: o queer nos trópicos
Na língua inglesa, a palavra queer refere-se ao estranho e esquisito, historicamente utilizada como uma maneira pejorativa de se referir a indivíduos de identidade e expressão de gênero desviantes da heteronormativa. Como forma de reescritura, os ativismos, durante os anos 1990, passam a utilizar o insulto que os interpela para produzir “um sujeito através dessa interpelação envergonhada” (Butler, 1993, p. 18)Ref4, uma forma de politizar os termos que nos definem e que tentam nos avergonhar. O queer em inglês bagunça os próprios termos das identidades, antes muito localizadas no território, na relação étnico-racial, e na classe social de modo pré-estabelecido. O termo acessa distintos países num imbricamento entre ativismo e academia, e nesse sentido, por uma epistemologia que propõe a crítica à realidade social e exige sua contextualização em suas condições de existência.
Nessa direção, o queer é tomado como uma espécie de malha aberta de possibilidades, composto ao mesmo tempo por lacunas, sobreposições, dissonâncias e ressonâncias. O queer pode ser visto em termos de lapsos e excessos que exibem os constituintes do gênero e da sexualidade. Entretanto, se o queer enquanto movimento investigativo propõe radicalidade e anti-essencialização, o que significa o queer no Brasil, considerando as disputas que envolvem a sua incorporação no país?
Uma aposta tem sido considerar o queer como parte de uma rede de textualidades, se tomarmos o texto não como unidade, mas como tecido complexo em suas dimensões temporais, espaciais e culturais. O queer em redes de textualidades, em redes de sentidos, de mediações, de confluência e de disputa com múltiplos processos culturais. Inspiro-me no trabalho de Juliana Gonçalves (2021)Ref19, que aborda as masculinidades como teias/tessitura de sentidos, com elementos provisórios, dinâmicos e nem sempre coerentes em suas conexões. Pensar o queer como rede de textualidades implica em dar vazão mais ao seu impulso de algo inacabado e transitório em relação ao corpo e ao gênero, e menos como uma identidade incorporada pacificamente em certos contextos.
Como rede em processo, significa pensar o queer mais como forma de articulação do que condição de pertencimento. Na tentativa de problematizar o queer no Brasil, termos tais como bicha, viado, sapatão, traveco, expressam identificações específicas, com raízes históricas profundas, sobre o que querem nomear. Os insultos em si podem até parecer, à primeira vista, similares, mas é curioso que todos eles, em seus usos sociais, não se aglutinam num único termo guarda-chuva, como o queer consegue nos países anglófonos.
Por isso nosso reforço no termo “transviado”, um importante gesto para fazer operar as especificidades culturais que conformam esses corpos insurgentes, contraventores, errantes, transgressores. Tertuliana Lustosa (2016)Ref24, em seu Manifesto Traveco-Terrorista, trata da importância de trazer para os contextos brasileiro, sudacas, latino-americanos as “feridas diárias e violências silenciosas”, constituidoras dos nossos territórios, numa tentativa de entender mais profundamente os desvios da norma cis-heterossexual em seus contextos específicos.
Nesse sentido, é preciso olhar as cenas transviadas não apenas em suas dinâmicas de consumo musical, mas principalmente em sua articulação política. Indianara Siqueira, ativista transvestigênere13, nos ajuda a compreender essas dinâmicas que extrapolam o universo musical. A ativista é fundadora de uma das pioneiras casas de acolhimento a pessoas LGBTQI em situação de vulnerabilidade no país, a CasaNem, no Rio de Janeiro. O espaço ganha forma a partir do projeto PreparaNem, curso de preparação para ingresso de pessoas trans, travestis e transexuais nas universidades públicas brasileiras. A CasaNem atualmente possui lugar fixo em um imóvel cedido pelo governo estadual. Foram cinco anos de luta com o poder público, o coletivo sofreu inúmeras ações de despejo e ataques violentos em alguns bairros por onde passaram. Na CasaNem, muitas das artistas que integram a cena já participaram de atividades, desde rodas de debate a festas para arrecadar fundos para manutenção do espaço.
Por outra perspectiva, o movimento Revolta da Lâmpada surge depois de uma série de violências contra um jovem, em São Paulo. No episódio, os agressores utilizaram lâmpadas fluorescentes para agredir o rapaz. Numa das ações do movimento, assumiram o “fervo”, expressão usada para falar do espírito festivo dos espaços LGBTQI, para afirmar que fervo é “um espaço de livre expressão artística e de gênero, onde se luta pelo direito de um corpo livre ao mesmo tempo em que se vive e celebra ele”, popularizando nas redes sociais e nos espaços da cena a frase “o fervo também é luta”. Há uma série de festas que compõem o cenário de circulação das artistas e de suas músicas, tais Batekoo, Mamba Negra, Capslock, Baile Helipa LGBT. No caso da Batekoo, por exemplo, sua tônica é a formação de um polo de conexão entre jovens negros LGBTQI em busca de “novas narrativas no cenário cultural brasileiro, de forma a promover transformações sociais dentro do mercado” (Moura, 2017)Ref28. Há na estética visual da festa o resgate de elementos afro-diaspóricos que se mescla a referências do Festival Afropunk, nos Estados Unidos.
A partir desses elementos vemos a formação de redes de cidadania, solidariedade e identidade, em processos que envolvem as práticas musicais e a ocupação dos territórios “formulados a partir de negociações da diferença, que ultrapassam hierarquias e binarismos fixos de alteridade” (Oliveira, 2015, p. 8)Ref30. A urbe, a cultura das ruas, os espaços de partilha das redes sociais tornam-se espaços tão potentes para compreensão de corporalidades dissidentes no Brasil e o modo como essas memórias culturais são recontadas em performances da vida cotidiana. O transviado no Brasil, em seus processos de reescrituras históricas, tem sua temporalidade marcada pela mutabilidade dos corpos e da cultura, e disputa um lugar na memória coletiva, deixando rastros de ocupação em territórios das cidades, nas práticas musicais, nas presenças e co-presenças das ambiências digitais. Mais do que um esforço de tradução, ao incorporarmos as questões do queer, é preciso deslocar uma possível lógica centro/periferia em busca de “apagamentos de saberes que são hoje como palimpsestos que nos esforçamos em reconhecer, em adivinhar suas lacunas para fazê-los falar” (Pelúcio, 2005, p. 3)Ref31.
5. Cenas transviadas, espaços contrapúblicos
A noção de cena urbana surge no âmbito da perspectiva sociológica com a pesquisa de John Irwin (1973)Ref22 sobre o surfe da Califórnia no período pós Segunda Guerra Mundial. O autor aborda o movimento cultural especificamente quando ele se torna um estilo de vida considerado não convencional, numa relação insiders/outsiders. Irwin (1973)Ref22 justifica seu interesse no fenômeno porque nele reconhece um protótipo de uma série de outros movimentos coletivos similares que se espalharam pela juventude estadunidense a partir dos anos 1960. No cruzamento entre música e estudos do urbano, Will Straw (2001)Ref36 dialoga com John Irwin, mas avança as proposições do interacionismo social e se aproxima dos estudos culturais e pós-estruturalistas.
Straw (2013)Ref35 concebe a cena cultural/musical como metáfora espacial para articulação de múltiplas práticas culturais/musicais. A partir da noção de sistemas de articulação, de Edward Said, cenas articulariam estruturas dominantes e seus localismos, uma forma de compreender como práticas musicais mobilizam mudanças e “fertilizações cruzadas”, da ordem das mutações entre diversos elementos culturais.
Pesquisadoras e pesquisadores brasileiros têm se apropriado desse conceito para observar a formação de cenas e os processos de localismos, que convergem com os impulsos cosmopolitas, entre fluxos locais e globais (Trotta, 2013, p. 67)Ref38. Em contrapartida, algumas dessas pesquisas têm adicionado camadas mais densas à apropriação cultural do conceito ao problematizarem as formações simbólicas e identitárias de etnia, raça, gênero e classe social nos territórios do Sul Global14. A partir do nosso contexto nativo, significa que as “diferentes condições de existência e de produção de sentidos” localizadas nas cenas musicais brasileiras são como “linhas de influência e solidariedade ao redor da cena” (Oliveira, 2015)Ref30, como nuances micropolíticas que envolvem as identidades no Brasil contemporâneo.
Dentro dos estudos do urbano e da geografia humanista, Doreen Massey (2008)Ref26 contribui com a reflexão ao criticar, por uma perspectiva feminista, as concepções estáticas de espaço. Em vez de tomar o espaço como natural e imutável, Massey propõe pensar outras dimensões espaciais que se formam como espaços da diferença. Massey busca rechaçar o domínio do masculino na concepção do espaço, buscando nos elementos de formação dos territórios as relações de gênero. Dessa forma, a autora desvela o espaço como esfera de possibilidade da existência da multiplicidade (Massey, 2008, p. 31)Ref26
Pela perspectiva feminista, o gênero é construído socialmente, ou seja uma temporalidade social, e na visão de Massey, se o gênero é algo socialmente construído, o espaço é, ao mesmo tempo, histórico e mutável. Portanto, o espaço não tem uma condição natural pré-estabelecida anteriormente, do mesmo modo como corpo e gênero também não possuem. Se pensamos na provocação que trago a partir do transviado, a força da luta contínua pela “desconformidade” não é apenas uma temporalidade. É, de maneira indissociável, uma questão espaço-temporal.
Se consideramos a manutenção de espaços conformados pela heteronormatividade, essa continuidade é forjada também em sua dimensão temporal, numa relação com os elementos ainda em dominância da modernidade, principalmente em torno da família reprodutiva, da tradição, da identidade nacional. Por isso, é preciso pensar que formações coletivas vão constituindo seus espaços possíveis como lugares nos quais podem viver fora das normas sexo-genéricas, em experiências marcadas pela diferença, numa espécie de energia que garante e legitima uma série de códigos culturais considerados desajustados, efêmeros e transitórios.
Jodie Taylor analisa “queer scenes” enquanto espaços comuns de rebelião, de “novos” significados e estilos, contestatórios e contraditórios ao mesmo tempo. A ideia de cena, quando pensada pela chave sexo-genérica e da diversidade, a princípio, nos ajuda a obter uma visão mais complexa da formação desses espaços de luta, sobre engajamentos e agenciamentos identitários que atuam na defesa de formas estilísticas de resistência e que garantem sobrevivência a vidas precarizadas pelo sistema sexo-genérico.
Os estudos de cena queer contribuem, nesse sentido, ao compreenderem socialidades que são consideradas promiscuidade pela cis-heteronorma. Quando olhamos para as enunciações estéticas dentro das cenas transviadas, seu modo performático excessivo é político porque coloca em jogo a ambiguidade, expondo a ficcionalidade do gênero. Além disso, ficcionalizar e fabricar a si mesmo, em coletivo, constrói imaginações e universos seguros, possíveis dentro de regimes de violência sistêmicos às suas vivências nos espaços. Formam-se a partir de espacialidades marginais, subterrâneas, que partilham a negação às normas de modo público, por meio de práticas incorporadas que tomam conta das ruas com música, dança, artes cênicas e visuais.
Muitas vezes, a aura de segredo que paira sobre esses espaços, lugares nebulosos e noturnos, tem a ver com o fato de que, por muito tempo, uma das estratégias de sobrevivência desses espaços era não deixar rastros. Desse modo, as cenas transviadas podem ser vistas como espaços de constituição de entrelugares, onde desejo e identificação aparecem menos como oposição e mais como instâncias coextensivas, zonas liminares, transitórias e ambíguas.
A noção de zona liminar aparece no trabalho do antropólogo Victor Turner (1988)Ref39, ao observar processos transitórios nos quais os sujeitos eram destituídos de suas posições sociais anteriores e passavam a ocupar um entrelugar impossível de caracterizá-lo plenamente. Entidades e zonas liminares indicam, conforme Turner (1988)Ref39, o contraste entre estado e transição, entre regulação e ruptura. A liminaridade é comparada “à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens” (Turner, 1988, p. 117)Ref39. A liminaridade permite àquilo que é relativo ao comum romper com a estrutura em sua porosidade, pela via marginal, pela transgressão e transformação das normas.
Judith Butler (2000)Ref6 reflete sobre zonas liminares ao conceber os sujeitos liminares como aqueles excluídos das normas que governam o reconhecimento humano. A autora questiona como podemos interpretar a agência do sujeito quando suas demandas por sobrevivência cultural, psíquica e política são vistas pela norma como mero estilo, sem o devido reconhecimento social. Os sujeitos liminares são sacrificados para manter a coerência dentro de uma sociedade, e mostram o quanto são excluídos, rejeitados, abjetificados na formação da comunidade humana (Butler, 2000)Ref6. O interessante no raciocínio de Butler (2000)Ref6 é o fato de que o estilo, que depõe contra a humanidade do sujeito pelas normas sociais, ao mesmo tempo também se torna força para transgressão, a partir de uma ética (e estética) de si, uma ação de sobrevivência dos sujeitos liminares nos espaços sociais.
É neste sentido que Butler observa como as relações de poder estabelecem quais são os corpos “elegíveis” para aparição, e aqueles corpos que estarão sujeitos à abjeção. A familiaridade e solidariedade, formuladas por Turner na concepção das zonas liminares, aparecem também na ideia de assembleia formulada por Butler (2019)Ref9 para dar conta dessa espécie de “ajuntamento” entre corpos considerados inelegíveis. A autora nos mostra que a luta dos corpos, quando em aliança, reivindicam o direito de aparecer no espaço público como um exercício performativo que “afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que [...] transmite uma exigência corpórea [...] não mais afetada pelas formas induzidas de condição precária” (Butler, 2019, p. 11)Ref9. Com o direito ao aparecimento no espaço público, Butler critica as noções de humanidade e individualidade das democracias modernas em seus contextos de precarização da vida, ao mesmo tempo tensiona os valores do capitalismo neoliberal e as estruturas sociais que impedem e restringem a própria vida.
Podemos afirmar que o direito de aparecer, como dimensão de luta dos corpos, além de performativo é também um exercício performático. Performances ritualizadas pressupõem transfigurações porque performances se dão a partir das interações sociais no espaço público – por isso, não se trata apenas de uma ética de si, mas de uma ética e estética de si que se expõe no coletivo. A ética e estética de si, em seu caráter de exposição pública, promove alianças em determinados espaços que podem ser tomados como comunidades relacionais de resistência, seguindo o pensamento de José Esteban Muñoz (1999)Ref29.
A ideia de esferas contrapúblicas seria uma forma de se apropriar e negociar traumas históricos e violências sistêmicas contra os corpos dissidentes. Inspirado em Nancy Fraser, Muñoz afirma que esferas contrapúblicas são arenas à margem nas quais seus integrantes, grupos sociais subalternizados, inventam e reinventam elementos da cultura dominante como contradiscursos. Esses grupamentos materializam nos espaços interpretações sobre suas próprias identidades, interesses e necessidades, e ressignificam outros valores sobre segurança e bem-estar comunitário.
Pela dimensão contrapública, os espaços transviados agem para se situarem na história e, assim, apreenderem sua agência social. Desse modo, cenas transviadas, se tomadas como espaços contrapúblicos, podem ser vistas como lugares de coalisões éticas e estéticas que funcionam tanto como autodefinição bem como divergência (Taylor, 2012)Ref37. Isso dialoga com as proposições de Rogério Haesbaert (2021)Ref21, no campo da geografia humanista, para quem o território indica a construção de territorialidades, no sentido de multiplicidades, que expõem as relações dos espaços com os regimes de poder.
Numa conversa com Michel Foucault, Deleuze e Guatarri, e os feminismos indígenas e negros, Haesbaert (2021)Ref21 considera o território como território de r-existência. Com isso, enfatiza sua relação com o que chama de “corpo-território”, noção que dialoga fortemente com as contribuições feministas e indígenas, e que revela o poder de re-existência localizado na corporalidade, já que o sujeito corporifica o exercício do poder em formas de luta. Corpo-território é uma chave para o autor colocar no centro do debate sobre espaço o comunitário como forma de vida e uma abordagem do território em “múltiplas escalas, ressaltando a importância da escala mais micro, mais íntima, que é o corpo” (Haesbaert, 2021, p. 175)Ref21.
Quando o autor aciona a noção de biopolítica, procura avançar a dimensão de análise do urbano que se restrinja apenas aos aspectos estritamente da ocupação física dos espaços. Como territorialidades, as desapropriações e expulsões, por exemplo, integram o regime biopolítico e reforçam a maneira que as disputas pelos espaços constituem parte de uma série de outras disputas dos regimes de violência. Na concepção de Rogério Haesbaert, habitamos nosso corpo-território, porque no corpo está “a concretude de inúmeras outras escalas de opressões, de resistências” (Haesbaert, 2021, p. 175)Ref21.
6. Elas não deitam: inconclusões finais
Falei, senti
Não foi a primeira vez que eu chorei, sofri
Talvez seja melhor não mais te ter aqui
Agora eu quero voltar a sorrir
Eu não vou deixar você me controlar, não vou voltar
Eu não vou mais te procurar, eu não vou deitar
Você pode até tentar, eu não vou deitar
(Pabllo Vittar – Não Vou Deitar)
Na canção Não Vou Deitar15, de Pabllo Vittar, a cantora drag queen aciona a gíria “deitar”, comumente usada pelos jovens LGBTQI no Brasil como sinônimo de insubmissão. Na música, “eu não vou deitar” refere-se a um sentido de insubmissão amorosa, mas que deve ser aqui ampliado para pensarmos as tantas insubmissões que, nós, sujeitos transviados, precisamos encarar em nossas experiências cotidianas. Trata-se de não mais voltar para o armário. Mais ainda, trata-se de “não deitar” para as estruturas que hierarquizam corpos e centralizam o poder no homem, branco, cis-heterossexual; para as violências que essas hierarquias produzem; e “não deitar” para as normas das indústrias culturais que, historicamente, sempre relegaram a nós os espaços das margens.
Meu esforço, com esse trabalho, foi propor uma articulação entre a noção de cena musical e as múltiplas cenas de ativismos contemporâneos, levando em consideração as ações performativas das estruturas, em suas violências sistêmicas, e a dimensão performática como força propulsora de mudanças e transformações sociais. Pensar em cenas transviadas nos permitiu refletir sobre como artistas da cultura pop e principais coletivos engajados na luta política cotidiana se juntam em aliança ou assembleia, como propõe Judith Butler (2019)Ref9.
Seguindo seu raciocínio, dentro de um regime específico de aparecimento, os excluídos e ignorados têm suas formas de ação política desvalorizadas e tensionam a própria noção de esfera pública. Butler afirma que essas ações consideradas ilegítimas emergem exatamente nos domínios considerados pré ou extrapolíticos, por isso a dimensão estética e performática é primordial para confundir a distinção entre dentro e fora e tentar subverter a lógica da política.
Apesar do intenso diálogo das cenas transviadas com as estruturas e dinâmicas do capitalismo, visto nas relações com empresas privadas e o mercado publicitário, o sentido de ocupação dos espaços midiáticos hegemônicos revela tanto pressões ao regime capitalista quanto seus limites. No âmbito do Brasil, é recorrente a crítica às chamadas políticas de identidades, que são vistas nas cenas musicais e dos ativismos, por parte de movimentos sociais e políticos tanto da esquerda como da direita. Por parte da esquerda, argumenta-se que a opressão econômica é ainda o único tipo de opressão de luta política; por parte de grupos da direita e neo-conservadores, ocorre uma intensa tentativa de deslegitimar as políticas de identidade, com a presença de mulheres, indígenas, pessoas negras na política institucional ou no mercado de trabalho. Nos dois espectros, vemos a preponderância da visão do homem branco, hetero e cis como universal, numa manutenção de valores ocidentais dominantes, e que reforça sua construção como identidade dominante.
Em termos de aparecimento, Butler diz que nos momentos disruptivos não se tem clareza de como opera o espaço político, do mesmo modo como não temos certeza sobre em que tempo vivemos. Afirma que os regimes estabelecidos de espaço e tempo são subvertidos de diferentes maneiras, e expõem sua violência estrutural e seus limites contingentes (Butler, 2019, p. 68)Ref9.
Para a construção de quadros contextuais socio-históricos em nossas pesquisas, temos observado certos fenômenos pela metáfora das ervas daninhas. Geralmente vistas enquanto danosas à produtividade, as ervas daninhas são “combatidas” pelo capitalismo com intuito de garantir a manutenção da lógica comercial da cultura agrícola. Enquanto ervas daninhas, performances e cenas transviadas podem ser consideradas “nocivas” ao jardim do capitalismo porque desestabilizam e reconfiguram determinadas normas de gêneros, convenções e práticas corporais de uma dada estrutura social (Cruz, Mendonça e Mota Jr, 2020)Ref12. Por isso, cenas transviadas nos revelam inconvenientes e ressignificações das experiências temporais da euromodernidade, e colocam em crise as normas da heterossexualidade compulsória como um projeto de dominação. Quando Muñoz trata da desidentificação como uma ética e estética de si, como uma performance autoetnográfica, que engloba marcadores de gênero, sexo, raça, classe, território, essas performances surgem e se apropriam das lógicas do capitalismo neoliberal para ironizar e parodiar padrões. Elas são encenadas por sujeitos historicamente descolados e marginalizados do espaço público e que tentam constituir outros espaços possíveis para si. A força performática revela engajamentos e investimentos afetivos que são principalmente políticos. Por isso, acredito que esses grupos juvenis articulam-se em comunidades relacionais e produzem mapas de pertencimento cujas ações são calcadas na política dos corpos.
Cenas transviadas é, neste trabalho, um gesto teórico-analítico para compreender como a exposição dos nossos corpos nessas esferas são regidos por normas e padrões específicos, entre hierarquias e invalidações dentro da complexa estrutura capitalista neoliberal. Num gesto de contextualização radical, cenas transviadas apontam para como as violências sistêmicas são tensionadas em formas de re-existência lúdicas, festivas e, não por isso menos combativas e políticas, e tampouco livres da contínua violência. Cenas transviadas é um modo de observar formas de constituição de múltiplos corpos, subjetividades e territorialidades inadequados e rebeldes.
Quando proponho revisitar a crítica feminista e os estudos queer para regurgitá-lo no Brasil, seguindo a provocação de Tertuliana Lustosa, busco com isso pensar tanto numa continuidade da violência que ainda opera por resíduos do colonialismo e da modernização tardia na América Latina, bem como na continuidade da luta dissidente que a história oficial teima em silenciar, ocultando suas nuances de rebeldia. É por isso que reivindico que compreender as condições de existência de uma cena transviada na atualidade significa pensá-la no plural. São cenas transviadas, um arranjo de cenas que se sobrepõem por um lastro social e histórico de inconformidade. Portanto, não se trata de abordar o fenômeno por um certo ineditismo, se tratamos de considerar a força das estruturas sociais e seu contínuo regime de opressões, em especial nos países como o Brasil. Para fugir das armadilhas da “novidade”, que aprisionam o fenômeno a uma espécie de “onda” queer global, tentamos pensar cenas como reescrituras de ações contínuas de subversão do nosso corpo-território. Como reescrituras, podemos dizer que há um palimpsesto de cenas, em que o “passado borrado emerge tenazmente, mesmo que borroso nas entrelinhas que escrevem o presente” (Martin-Barbero, 2017, p. 34)Ref25. Um emaranhado de cenas resistentes e rebeldes, cenas passadas e contemporâneas que se cruzam em mutações, estéticas, culturas e políticas de sobrevivência.
Nesse sentido, nomeio o percurso final de “inconclusões” porque não pretendo encerrar as discussões trazidas, tampouco busquei nesse artigo delimitar ou circunscrever o fenômeno, dando conta de uma possível inteireza. Ao contrário, sua fluidez é o que me mobiliza a problematizar nossas próprias teorias e epistemologias, e tentar, desse modo, construir contextos que sejam capazes de indicar, em nossas análises sobre fenômenos sociais, nossas condições de existência sem apagar certas marcas que nos constituem.
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42) Williams, R. (1979). Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Notas
1) Sigla expandida das dissidências sexuais e de gênero que agrega Lésbicas, Gays, Transgêneros, Queer, Intersexo, Agênero e Assexual, Panssexual e o sinal de adição para outras possibilidades.
2) Para se ter noção, apenas em 2019 o Supremo Tribunal Federal brasileiro permitiu a criminalização da homofobia e da transfobia. Na decisão da corte, as ações homofóbicas e transfóbicas devem ser enquadradas na lei de racismo, promulgada em 1989 no país.
3) Travesti é a identificação que difere da que foi designada no nascimento e que incorpora fatores sociais vinculados à América Latina. Mulher transgênero é uma pessoa que não se identifica a partir de uma associação determinista sexo-gênero, assumindo uma identidade enquanto mulher.
4) Disponível em <https://youtu.be/uunqc97qexU>. Acesso em 22 dez. 2021.
5) Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=lYuepseCRGY>. Acesso em 23 dez. 2021.
6) Disponível em <https://bit.ly/3h9W6m9>. Acesso em 23 dez. 2021.
7) Disponível em <https://youtu.be/BPfO6WKr8fs>. Acesso em 23 dez. 2021.
8) Disponível em <https://youtu.be/5YHrSxgm8U0>. Acesso em 23 dez. 2021.
9) Disponível em <https://youtu.be/X9g3_yhAn6I>. Acesso em 23 dez. 2021.
10) Disponível em <https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/canal-de-pablo-vittar-no-youtube-e-invadido-e-aparece-com-foto-de-bolsonaro-e-clipe-ko-deletado.ghtml>. Acesso em 22 dez. 2021.
11) Video disponível em <https://www.facebook.com/watch/?v=1702026659853714>. Acesso em 22 dez. 2021.
12) O termo necropolítica, convocado por Bento (2016), é desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe a partir da noção de biopoder, de Michel Foucault.
13) Termo usado por alguns ativismos para agregar as lutas travestis, de pessoas trans e não-binaries.
14) Sul Global refere-se as experiências globalizadas vividas em determinados países subdesenvolvidos, marcados pela modernização tardia e pela estrutura da colonialidade. Boaventura Sousa Santos, por exemplo, propõe epistemologias do sul como forma de expandir a imaginação política além do Norte global, e busca repensar as sociedades a partir de saberes e práticas do Sul Global.
15) Disponível em <https://youtu.be/kK3aezZnoP4>. Acesso em 23 dez. 2021.
Breve curriculum de los autores
Araujo Mota, Edinaldo
Edinaldo Araujo Mota e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA) com período de estágio doutoral na Universidad Rey Juan Carlos (Espanha). Pesquisador do Centro de Pesquisa em Estudos Culturais e Transformações na Comunicação (TRACC) e do Grupo de Pesquisa Cultura Audiovisual, Historicidades e Sensibilidades (CHAOS).