Epidemia discursiva: considerações por uma perspectiva da análise do discurso e dos estudos da comunicação
Discursive epidemic: considerations from a discourse analysis perspective and communication studies
Ramalho Procópio, Mariana
https://orcid.org/0000-0001-9661-5883
Universidade Federal de Viçosa, Brasil
dos Santos Filho, Robson Evangelista
https://orcid.org/0000-0002-8560-9768
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Brasil
Año | Year: 2023
Volumen | Volume: 11
Número | Issue: 2
DOI: http://dx.doi.org/10.17502/mrcs.v11i2.626
Recibido | Received: 16-11-2022
Aceptado | Accepted: 2-3-2023
Primera página | First page: 1
Última página | Last page: 8
Neste trabalho, de caráter ensaístico, objetivamos apresentar fundamentos teórico-conceituais do campo do discurso e da comunicação que nos permitem refletir sobre as epidemias como realidades discursivas (Maingueneau, 2020). Para isso, revisitamos pesquisas desenvolvidas por Bessa (1997; 2002), Treichler (1987), Daniel e Parker (2018) e Santos Filho (2020) no tocante à epidemia de HIV/aids ancorados na experiência contemporânea e midiatizada da pandemia de covid-19. A partir de nossa reflexão, propomos, como resultado, a ampliação do conceito de epidemia discursiva como um conjunto de imaginários criados e partilhados discursivamente por âmbitos sociais diversos, num contexto de midiatização e excesso de enunciados sobre determinada temática, expressando determinadas visões de mundo dominantes em uma dada sociedade e um dado momento, mas que pela proliferação e repetição duradoura sem mutabilidade, se consolidam na memória coletiva de modo tão potente a ponto de serem frequentemente lembrados.
Palabras clave: epidemia discursiva, imaginários sociodiscursivos, interdiscurso, memória discursiva, midiatização,
In this article, of an essayistic nature, we aim to present theoretical-conceptual foundations in the field of discourse and communication that allow us to reflect on epidemics as discursive realities (Maingueneau, 2020). For this, we revisit research developed by Bessa (1997; 2002), Treichler (1987), Daniel and Parker (2018) and Santos Filho (2020) on the HIV/aids epidemic and tension the contemporary experience of the COVID-19 pandemic in a mediatization scenario. From our reflection, we propose, as a result, the expansion of the concept of discursive epidemic as a set of imaginaries created and shared discursively by different social spheres, in a context of mediatization and excess of statements on a certain theme, expressing certain dominant worldviews in a given society and at a given moment, but which, through proliferation and lasting reiteration without mutability, are consolidated in the collective memory in such a powerful way as to be frequently remembered.
Key words: discursive epidemic, sociodiscursive imaginaries, interdiscourse, discursive memory, mediatization,
Ramalho Procópio, M., e Santos Filho, R. E. (2023). Epidemia discursiva: considerações por uma perspectiva da análise do discurso e dos estudos da comunicação. methaodos.revista de ciencias sociales, 11(2), m231102n01. http://dx.doi.org/10.17502/mrcs.v11i2.626
1. Introdução
Acontecimentos inesperados ou pouco conhecidos, como emergências de saúde, favorecem a circulação do assunto em diferentes circuitos de comunicação. Foi desse modo que, no cenário contemporâneo, a pandemia de Covid-19 fez emergir diversos vocábulos e conceitos. Por exemplo, alguns neologismos surgiram a partir da combinação de termos da comunicação e da epidemiologia para se referirem a fenômenos comunicacionais que influenciam na saúde pública, como infodemia, caracterizada como excesso de informações, algumas imprecisas ou falsas, que dificulta encontrar fontes e orientações confiáveis em meio à desinformação (Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2020)Ref17, e pandemídia, que corresponde à conturbação no cenário midiático que inclui a proliferação de enunciados variados em todos os tipos de mídia e a disputa simbólica pelo poder da palavra (Araújo & Cordeiro, 2020)Ref1.
Foi desse mesmo modo que, diante dos discursos produzidos e compartilhados sobre a epidemia de HIV/aids desde a década de 1980, surgiu a expressão epidemia discursiva, que abordamos neste trabalho, de natureza ensaística, a fim de discutir e ampliar tal conceito. Em uma consulta a estudos que se valeram dessa noção1, notamos que a maioria deles se baseia nas obras de Marcelo Secron Bessa (1997Ref4, 2002Ref3), que partem do pressuposto de que a aids não é apenas uma questão de saúde, mas também discursiva, sobretudo pela construção da doença pelos discursos biomédicos e midiáticos frente à urgente necessidade de torná-la inteligível para, então, lidar com ela. O autor analisa se aquilo que ele chama de literatura da aids consegue desconstruir essa epidemia discursiva marcada por visões estigmatizantes, monopolizadoras e autoritárias, e, então, apresentar outras concepções e abordagens da epidemia.
De modo análogo, nessa pesquisa bibliográfica, encontramos outras referências seminais para a presente discussão, mesmo que com diferentes nomenclaturas que, por vezes, se confundem ao serem mencionadas. Paula Treichler (1987)Ref27, por exemplo, em seus trabalhos sobre as representações de HIV/aids a partir dos estudos culturais, apontou que, paralelamente à epidemia real que atingia os corpos, havia também uma epidemia de sentidos ou de significados nas mais variadas esferas discursivas e, então, a autora foca em compreender como eles se originam, proliferam e se estabelecem. Já Herbert Daniel e Richard Parker (2018)Ref10 chamaram de terceira epidemia, baseados na declaração de Jonathan Mann durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1987. Segundo esse médico, havia três epidemias distintas, mas interrelacionadas: a de HIV, resultante da infecção pelo vírus; a de aids, pela síndrome da imunodeficiência que se dá com o agravamento dos casos de HIV; e, enfim, o que interessa para este trabalho, a terceira epidemia, constituída pelas reações sociais, culturais, políticas e econômicas diante do HIV e da aids. Para aqueles autores, essa epidemia seria provocada pelo “vírus ideológico, de consequências mais funestas do que a epidemia provocada pelo vírus biológico” (Daniel & Parker, 2018, p. 10)Ref10, a partir de forças relevantes e com base em distorções e preconceitos.
Em um trabalho recente (Santos Filho, 2020)Ref22, nos apropriamos da formulação de epidemia discursiva de Bessa (2002)Ref3 para refletirmos sobre como os discursos médicos, científicos, políticos, religiosos e midiáticos, baseados em ideias equivocadas e valorações morais, foram construindo e disseminando representações sobre o HIV e a aids que ainda se mantêm em nosso imaginário social mesmo 40 anos depois. De acordo com esse autor, é com esses discursos oitentistas que ainda temos de dialogar atualmente, seja reiterando ou refutando-os, mas tendo-os sempre como modelo:
É possível perceber que, ao lado de todas as novas informações e de toda uma nova compreensibilidade do que é a epidemia (e que continuam em permanente mutação), aquilo que hoje entendemos como aids e o que sabemos sobre ela ainda convive, mesmo que de uma forma não tão clara, com visões vagas, truncadas e contraditórias, divulgadas desde o início da epidemia, das mais diversas formas e nos mais variados veículos, ainda que as julguemos extintas ou esquecidas. Mas não estão (Bessa, 2002, p. 27)Ref3.
Em nossas pesquisas para tratar desse fenômeno2, analisamosRef23 discursivamenteRef24 relatos de pessoas que vivem com HIV e que contam na internet, especificamente no YouTube, as suas vivências com o vírus, de modo a perceber os imaginários que se fazem presentes nas narrativas contemporâneas e midiatizadas sobre a epidemia3. ARef16 partir disso, encontramos imaginários sociodiscursivos que, por exemplo, ainda associam o HIV à morte e à doença, o justificam pela promiscuidade e irresponsabilidade e o resumem a sexo e homossexuais e que são evocados imediatamente quando se pensa em aids e HIV. Isso porque tais imaginários foram construídos principalmente por discursos médico-psi-biológicos que, a partir de relações de poder e saber, estabelecem verdades sobre processos de saúde e doença que incidem sobre corpos e comportamentos, fabricando representações da epidemia e dos sujeitos por ela atingidos, das quais algumas ainda persistem, embora já contraditas e desmentidas. Como em uma epidemia discursiva.
Percebendo a aproximação entre as ideias apresentadas e o contexto de atualização da discussão no curso da pandemia de covid-19, o nosso objetivo é dar contribuições ao conceito de epidemia discursiva, muito utilizado, porém ainda pouco desenvolvido. Para tanto, neste trabalho de caráter ensaístico, estabeleceremos diálogo tanto com os estudos da comunicação sobre midiatização quanto com a Análise do Discurso, especificamente o que concerne a interdiscursividade, a memória discursiva e os imaginários sociodiscursivos. Para fins de organização deste texto, propomos três eixos de discussão: (i) a reflexão sobre a midiatização para entendermos o modo como produzimos sentidos para as diversas situações de comunicação e saúde; (ii) as noções de interdiscurso, memória discursiva e imaginários sociodiscursivos como lentes teóricas principais para atualização conceitual e compreensão das pandemias como acontecimentos discursivos; (iii) por fim, apresentamos o conceito atualizado de epidemia discursiva, a partir de uma reflexão ancorada na experiência da epidemia de HIV/aids, diacronicamente localizada com as vivências contemporâneas.
2. A midiatização como operador da produção e circulação de sentidos no contemporâneo
Nos termos de Braga (2012)Ref5, midiatização enuncia um complexo fenômeno social, no qual as relações sociais são, historicamente, atravessadas por mídias, compreendidas aqui como materialidades e aparatos técnicos que participam de processos de produção e circulação de sentidos. Vivemos um tempo altamente midiatizado, ou seja, permeado por processos por meio dos quais sociedade e cultura tornam-se cada vez mais dependentes das mídias e das suas lógicas, de seus modus operandi.
Stig Hjarvard (2012, p. 54)Ref13, ao discutir midiatização, busca compreender como as instituições e os processos culturais se transformaram em função da “onipresença da mídia”, e através das mudanças ocorridas nas próprias mídias. A midiatização é, para muito além de um uso das mídias, um modo de viver, de se relacionar e de existir socialmente nas/pelas mídias.
No contexto midiatizado, percebemos um poder difuso, exercido por diferentes agentes sociais. Se em momentos anteriores, o poder estava essencialmente ligado a instituições de controle e disciplina, num contexto midiatizado, o poder encontra-se espraiado. Para melhor compreendê-lo, precisamos ter em mente que:
(…) el poder es una posibilidad de actuar con un objetivo performativo, es decir que se ejerce sobre algo exterior al sujeto que lo pone en práctica. Ese “algo”pueden ser los seres humanos, la sociedad, el mundo o las ideas. Esto supone de la parte de quien lo ejerce una capacidad de actuar. Ese actuar puede hacerse por medio de la fuerza física y/o de la palabra. En definitiva, el poder se ejerce en nombre de una autoridad que lo legitima. (Charaudeau, 2009, p. 98)Ref6.
Neste sentido, as instâncias de legitimação do poder podem ser provenientes tanto de um valor moral, um saber, uma relação de força, uma posição institucional ou mesmo de um reconhecimento carismático para se instaurar. “El poder es, por lo tanto, una posición atribuida que otorga fuerza de coacción (ejercer una presión), con la ayuda de una sanción, en nombre de un valor” (Charaudeau, 2019, p. 98-99)Ref6.
Uma vez que a midiatização se realiza em um quadro interacional com outros campos sociais, tais como o psicológico, cultural e tecnológico, as relações de poder serão constituídas nos tensinomentos e atravessamentos destes campos. Localizamo-nos em tempo-espaço em meio ao qual nossas subjetividades e modos de existir socialmente atravessam, inevitavelmente, as experiências de manejo e apropriação dessas mídias. É este quadro que irá permitir compreender as afetações da mídia em outras instituições, assim como será possível perceber a autonomia dela como instituição social (Hjarvard, 2012)Ref13. Família, política, ciência e religião, por exemplo, sofrem influência dos meios de comunicação através dos seus espaços de interação. Além disso, a mídia, como outras instâncias de poder, constitui a realidade, a exemplo de como se deu com a construção da epidemia de HIV/aids ou, mais recentemente, da pandemia de covid-19.
Vivenciar essa pandemia, em um contexto midiatizado, fez com que esta se tornasse uma experiência diferente, sobretudo das situações de emergência de saúde contemporâneas. Vardiero e Procópio (2021, s. p.)Ref28 sinalizam que, no início de 2020, “a repercussão mundial do vírus invadia as nossas casas e comparava os noticiários a uma novela da vida real que passou a estar presente em todas as nossas telas, sejam elas computadores, televisões, tablets e/ou celulares”. Ademais, ao mesmo tempo em que as mídias aproximaram as pessoas virtualmente —devido ao isolamento presencial recomendado pelas organizações sanitárias e seguidas por governos ao redor do mundo para evitar a propagação do novo coronavírus—, também colocaram em voga as disputas discursivas em torno dos acontecimentos vivenciados.
No tocante ao contexto de urgências epidemiológicas como essas, posicionamo-nos como Maingueneau (2020)Ref14, para quem tal situação –—uma epidemia, por exemplo— será espontaneamente apreendida pelas suas realidades biológica, médica e social. Contudo, ao problematizarmos a pandemia também pelo prisma do discurso, somos convocados a refletir sobre as diversas afetações e sentidos que a experiência desse acontecimento histórico e também discursivo faz emergir.
3. Pelas lentes teóricas dos estudos discursivos: interdiscurso, memória discursiva e imaginários socio-discursivos
Entendemos o interdiscurso como um princípio essencial para a Análise do Discurso que, advindo do conceito bakhtiniano de dialogismo, atravessa de maneira multiforme todos os discursos. Na esteira de Charaudeau e Maingueneau (2008)Ref8, a propriedade da interdiscursividade nos revela remissões entre discursos cujas situações de configuração textual nem sempre estão memorizadas, mas que podem evidenciar um sentido interdiscursivo, reveladores de valorações simbólicas.
O princípio da interdiscursividade ajuda a explicar o movimento e a permanência dos imaginários, pois, conforme postula, tudo o que é dito já foi dito por alguém, alguma vez, sendo os enunciados ecos de outros enunciados e a enunciação atravessada por outros discursos, mesmo que inconscientemente (Maingueneau, 2015)Ref15. Para Courtine (2009)Ref9, a produção discursiva faz circular enunciados anteriores como um efeito de memória que irrompe na atualidade e pode reforçar, redefinir, transformar ou, ainda, negar o já-dito. O autor traz a noção de memória discursiva para a Análise do Discurso a partir de suas influências foucaultianas, defendendo a existência histórica dos discursos, que são ditos, permanecem ditos e estão ainda a dizer.
Para tratar dessa memória discursiva sob a perspectiva do discurso e desassociá-la de uma dimensão exclusivamente cognitiva, Paveau (2007)Ref18 toma como base a memória coletiva de Halbwachs (2006)Ref12, para quem o indivíduo é um ser social e, então, sua memória vem do coletivo que articula e situa lembranças em quadros sociais comuns, como um acervo compartilhado, de forma forte, duradoura e fácil de rememorar. Nessa memória coletiva vivem, portanto, discursos que foram e são repetidamente recordados, mobilizados pelo princípio da interdiscursividade com a pretensão de se fixarem, como os imaginários sociodiscursivos que nela se sedimentam (Charaudeau, 2017)Ref7.
Enquanto formas de apreensão do mundo pela lógica das representações sociais, os imaginários sociodiscursivos constroem sentidos sobre os fenômenos, objetos, seres humanos e suas condutas, sendo engendrados pelos discursos que circulam nos domínios sociais, visando demonstrar as visões de mundo relativas a um determinado assunto e em uma situação comunicativa específica, com uma dupla função: criação dos valores que serão difundidos na sociedade e justificativa das ações de indivíduos e grupos sociais. Conforme Charaudeau (2017)Ref7, os imaginários são constituídos pelos saberes de conhecimento e de crença circulantes na sociedade, em suas mais variadas formas de configuração. Para ele, os saberes de conhecimento tendem a estabelecer uma verdade que independe da subjetividade do sujeito. Neste caso, o mundo se sobrepõe ao homem e é a partir da verificação, provada (no caso dos saberes científicos) ou experimentada (no caso dos saberes de experiência) que determinado argumento se legitima e se fundamenta. Já os saberes de crença pertencem a um modo de explicação do mundo proveniente de julgamentos e apreciações dos sujeitos. No caso dos imaginários sociodiscursivos sobre HIV/aids, constituídos tanto por saberes de conhecimento quanto de crença, muitos foram reformulados pelos primeiros, ao passo que continuam presentes e sustentados pelos segundos, conformando, como discorreremos a seguir, uma epidemia discursiva.
4. As epidemias discursivas: acontecimentos vividos e discursivamente significados
A epidemia é comumente tomada como metáfora pelos discursos midiáticos que falam, por exemplo, em epidemia de fome, pobreza, violência ou corrupção para se referir a essas e outras mazelas sociais que adquirem grandes proporções na população. Esse uso vai ao encontro da etimologia da palavra, que, oriunda do grego, significa “sobre o povo”, mas designava originalmente as doenças que assolavam determinadas regiões e que, ao contrário do contexto globalizado contemporâneo, nelas tendiam a permanecer em razão das limitações de deslocamento. Para a Epidemiologia, epidemia corresponde à ocorrência de um elevado número de casos de uma doença em uma dada localidade, mas também à rápida difusão deles, como apresenta, por exemplo, Rezende (1998)Ref20 em uma reflexão sobre esse termo. Portanto, para descrever uma epidemia, regiões e populações são consideradas como fatores, assim como a frequência dos casos em um determinado período.
Nesse sentido, quando falamos em epidemia discursiva, estamos nos referindo à emergência de uma grande quantidade de discursos em diversos domínios sociais, mas também à proliferação desses discursos. Essa noção pode ser usada, portanto, para dar conta tanto do volume e do fluxo de enunciados nos espaços sociais quanto, sobretudo, da propagação ao longo do tempo pelo exercício da interdiscursividade pela qual eles vão se estabelecendo na memória discursiva, uma perspectiva não adotada por alguns autores.
É nesse ponto que sustentamos o que entendemos e propomos como epidemia discursiva: um conjunto de imaginários criados e partilhados discursivamente por âmbitos sociais diversos, em um contexto de midiatização e excesso de enunciados sobre determinada temática, expressando determinadas visões de mundo dominantes em uma dada sociedade e em um dado momento, mas que pela proliferação e repetição duradoura, com difícil mutabilidade, se consolidam na memória coletiva de modo tão potente a ponto de serem frequentemente evocados. Tomemos como exemplos alguns desses imaginários sobre HIV/aids.
Com os avanços biotecnológicos, o diagnóstico positivo para o HIV deixou de ser uma sentença de morte ou de doença como nos primórdios da epidemia, passando a ser uma condição crônica. Isso só se tornou possível com o advento dos medicamentos antirretrovirais que conseguem inibir a multiplicação do vírus e reduzir a carga viral no organismo, impedindo a evolução da infecção para a aids, quadro mais grave em que aparecem doenças oportunistas, e, consequentemente, a morte em decorrência delas. O tratamento garante mais expectativa e qualidade de vida às pessoas que vivem com o vírus4. Apesar disso, o HIV ainda é confundido com a aids, a doença, e considerado como fatal.
Também parecem persistir percepções incorretas sobre as formas de contágio, que intensificam a discriminação contra as pessoas com aids e HIV, acreditando que a transmissão pode ocorrer por beijo, abraço, masturbação, suor, lágrima, picada de inseto, pelo ar ou uso de mesmo banheiro, assento ou objetos como toalhas, copos e talheres, embora já se saiba que se dá a partir de sexo sem preservativo, transfusão de sangue contaminado, compartilhamento de instrumentos perfurocortantes não esterilizados, como de seringas para uso de drogas injetáveis, e de mãe para filho durante a gravidez, o parto ou a amamentação, quando não adotadas as medidas preventivas. Além disso, o foco está preponderantemente nas relações sexuais, sobretudo no sexo anal e entre pessoas do mesmo sexo, o que é visto como um perigo.
Conforme Pelúcio e Miskolci (2009)Ref19 discorrem, a aids foi um fato biológico, mas também uma construção social, uma vez que poderia ter sido demarcada como uma doença viral qualquer, tal qual a hepatite B, e, no entanto, foi delimitada como uma doença sexualmente transmissível, provocando mudanças profundas na forma com que a sociedade lida com a sexualidade até os dias atuais. Circunscrita a determinados e estigmatizados grupos, como gays, bissexuais e profissionais do sexo, que tidos como promíscuos e irresponsáveis, foram então culpabilizados, a construção em torno da aids funcionou como uma patologização, ou melhor, uma repatologização das sexualidades consideradas dissidentes, que já haviam sido categorizadas antes como doença. Ou seja, aquelas que não se enquadram na norma do “bom sexo”, que, de acordo com Rubin (2003)Ref21, corresponde às relações sexuais entre homem e mulher, heterossexuais, monogâmicos e de preferência casados, que acontecem em casa, a fim de procriação e não comercial, e que são compreendidas como naturais, saudáveis e seguras e, então, são aceitas. Embora se saiba que qualquer pessoa está suscetível a contrair HIV, já que o vírus não escolhe orientação sexual, a definição dos “grupos de risco” ainda persiste, fazendo com que outras pessoas, como heterossexuais, acreditem erroneamente que não precisam se preocupar ou prevenir, o que pode explicar os altos índices de infecção nesse grupo5.
Para Bastos (2006)Ref2, essa construção em torno da aids foi uma fábula científica moderna criada por epidemiologistas equivocados e não pela sabedoria popular e que, ao circular mais que o próprio vírus, levou anos para o pensamento crítico desconstruir. Tais proposições já foram, então, reformuladas em alguma medida pelo campo médico-científico, porém prevalecem no senso comum. Muitos desses imaginários se devem aos discursos midiáticos que, segundo Galvão (2000)Ref11, representaram a primeira resposta à epidemia em seu início, marcado por um parco conhecimento e pela falta de iniciativas governamentais. A aids, contudo, só passou a ser pautada pela mídia ao atingir grandes centros urbanos e pessoas brancas de classe média, pois quando já afetava os países africanos, passava despercebida (Bastos, 2006)Ref2. Após essa omissão, que também se deu pelos primeiros casos terem sido registrados majoritariamente naqueles marginalizados grupos, a mídia se debruçou bastante sobre o tema, inaugurando a epidemia discursiva com a divulgação da ameaça de uma nova doença, contagiosa, incurável e letal, então chamada de “câncer gay” (Bessa, 2002)Ref3.
Em relação a isso, para Sousa (2016)Ref26, a epidemia de HIV/aids, que, segundo ele, foi a primeira epidemia midiatizada, foi discursivizada pela mídia, que não só a reportava, mas inventava formas de vê-la, percebê-la e vivenciá-la, as quais passaram por mudanças com a cronificação da epidemia pela terapia antirretroviral, fazendo aparecer o que o autor chama de narrativas pós-coquetel, sobretudo em produções artísticas e culturais. De acordo com ele, com essa outra face da epidemia, o HIV e a aids deixaram de ocupar as pautas, como se, após uma epidemia discursiva, de um falar intenso, houvesse um emudecimento. Se considerarmos epidemia discursiva a partir daquela perspectiva que dá conta apenas da abundância e disseminação dos discursos sobre o tema, podemos concordar, mas não se considerarmos a perspectiva que sugerimos aqui, de epidemia discursiva que, para nós, abarca também como esses discursos ainda se fazem presentes em nosso imaginário. Se como Bastos (2006)Ref2 preconizou, em uma dimensão epidemiológica, a aids veio para ficar, acreditamos que tal asserção vale também e, principalmente, para a dimensão discursiva.
5. Considerações finais
É possível perceber os processos de continuidades e tentativas de mudanças dos sentidos sobre a epidemia de HIV/aids, ou seja, quais os sentidos que foram sendo atribuídos e que ficaram, intactos ou alterados, mas, de qualquer forma, ainda latentes, sendo, pois, recorrente e facilmente acionados para negação ou reiteração. Isso porque, apesar das transformações no que se refere à epidemia, são estabelecidas relações interdiscursivas com os enunciados anteriores que constituem a memória dela, desde os seus anos iniciais e que, resistindo a décadas, interferem no atual processo de representações.
Como o olhar para o passado sempre se dá a partir do presente, do contexto cultural contemporâneo, então muitas dessas representações sobre a aids e o HIV se conservaram porque ainda encontram respaldo, na atualidade, em uma sociedade conservadora — e, então, não à toa o emprego desse termo. Com a tradicional presença da direita e do cristianismo e ainda bastante apegada a moralidades que orientam as suas concepções sobre o mundo, essa sociedade se recusa ou tem dificuldade em permitir mudanças, por exemplo na esfera da sexualidade, o que é um empecilho para a ressignificação da epidemia de aids/HIV, que, conforme Bastos (2006)Ref2 afirma, tem uma estreita relação com temas tabus para qualquer agenda conservadora.
Desse modo, os imaginários que aqui elencamos impactam significativamente a prevenção, testagem e tratamento, enfim, o controle da epidemia de HIV, que, portanto, depende simultaneamente do controle de sua epidemia discursiva. Conforme Susan Sontag (2007)Ref25 recomenda em sua clássica obra sobre as metáforas da aids, é preciso que estas, enquanto parte de um antigo e inexorável projeto de significação de doenças que, como visto, estigmatiza corpos e comportamentos sexuais, sejam, pois, conhecidas, criticadas e contestadas. Por isso, é fundamental compreender a epidemia discursiva, como tentamos fazer neste artigo, para tentar conferir outros e novos sentidos à aids e ao HIV, assim como às pessoas que com eles vivem.
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28) Vardiero, T. P. & Procopio, M. R. (2021). Máscaras, Álcool em Gel, Ação: o Cotidiano dos Profissionais de Saúde na Pandemia Narrado na Novela Amor de Mãe. Em: XIII Encontro Nacional de História da Mídia, Juiz de Fora - MG. Anais do XIII Encontro Nacional de História da Mídia.
1) Consulta realizada em novembro de 2022 pela plataforma do Google Scholar.
2) Em trabalhos anteriores, adotamos diferentes corpora para análise discursiva dos imaginários sobre a epidemia de HIV/aids. Tais análises podem ser encontradas em Santos Filho e Procópio (2020, 2022).
3) Por ser este um artigo de natureza ensaística, optamos por desenvolver uma argumentação qualitativa, interpretativa e reflexiva em torno da formulação conceitual escolhida (no caso, o conceito de epidemia discursiva). Baseamo-nos em Meneghetti (2011), para quem o ensaio possibilita uma experimentação diferente do objeto, na qual é possível esquivar-se de classificações e quantificações características da racionalidade instrumental moderna. Ademais, o gesto de pesquisa por nós aqui desenvolvido se constitui de um movimento investigativo que considera as interpretações resultantes de nossas pesquisas anteriores e que nos convidam a nos aventurar numa atualização conceitual.
4) Além disso, já foi comprovado que as pessoas que vivem com HIV, em terapia antirretroviral e com a carga viral indetectável, não transmitem o vírus sexualmente, o que contribui para o controle da epidemia, já que o tratamento passa a ser também uma forma de prevenção. E pode contribuir, ainda, para evitar a sorofobia, graças à mudança na dimensão do risco, da culpa e do estigma, uma vez que as pessoas que vivem com HIV podem deixar de ser tidas como uma ameaça para as demais.
5) No Brasil, de acordo com o Boletim Epidemiológico publicado em dezembro de 2022, foram registrados, desde 2007, em pessoas com mais de 13 anos, aproximadamente 159 mil casos de infecção por HIV a partir de exposição ao vírus por relações homossexuais e bissexuais, ao passo que por relações heterossexuais foram contabilizados 202 mil casos. Enquanto para homens, 44,4% dos casos foram por relação homossexual, 8,2% bissexual e 30,4% heterossexual, para as mulheres a taxa de infecção por relação heterossexual representa 86,6% dos casos. Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/boletins-epidemiologicos/2022/hiv-aids/boletim_hiv_aids_-2022_internet_31-01-23.pdf/view. Acesso em: 25 fev. 2023.
Ramalho Procópio, Mariana
Mariana Ramalho Procópio é professora do Departamento de Comunicação Social, dos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Desenvolve pesquisa sobre narrativas de vida, análise do discurso, narrativas midiáticas, estudos de gênero.
dos Santos Filho, Robson Evangelista
Robson Evangelista dos Santos Filho é mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e doutorando em Informação e Comunicação em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Desenvolve pesquisa com interesse nos seguintes temas: discursos midiáticos, narrativas de vida, identidades, representações, sexualidades e HIV/aids.